24/12/2025 06h12
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Psicologia e bem-estar como pilares para o futuro do trabalho portuário
No âmago dos portos brasileiros pulsa uma força de trabalho vital, porém ainda pouco ou mal reconhecida: o Trabalhador Portuário Avulso (TPA). Estima-se que mais de 20 mil trabalhadores avulsos sustentam as operações portuárias, que respondem por mais de 90% do comércio exterior nacional.
Enquanto o caminhoneiro — peça-chave do modo rodoviário — já tem seu desgaste mental reconhecido em programas de acolhimento e saúde ocupacional, o TPA permanece à sombra, enfrentando uma rotina singular de instabilidade, pressão operacional extrema e riscos físicos e psicológicos que, lamentavelmente, raramente são objeto de políticas públicas consistentes ou práticas empresariais estruturadas
Desafios do Milênio e a Relevância do Trabalho Portuário
Vivemos um momento histórico marcado por desafios complexos — desde as mudanças climáticas até os impactos da tecnologia na organização do trabalho. A COP 30, encontro global que reforça o compromisso mundial com a sustentabilidade, traz à tona a urgência de adaptarmos nossas operações portuárias a uma economia resiliente e responsável, contemplando a saúde integral dos trabalhadores como um componente estratégico.
O trabalho portuário, essencial no comércio global, é diretamente impactado por esta agenda, exigindo práticas que promovam o bem-estar, a segurança e a sustentabilidade social,
No Brasil, a necessidade de alinhamento com essas demandas internacionais estimula iniciativas recentes, tanto no campo governamental quanto privado: o Ministério do Trabalho tem ampliado programas de promoção da saúde mental no setor portuário, enquanto associações como a ABRAPSIT têm desenvolvido diretrizes específicas para a psicologia ocupacional no transporte e operações portuárias.
Internacionalmente, programas modelo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da International Maritime Organization (IMO) advogam pela incorporação de abordagens psicossociais na segurança do trabalho marítimo-portuário, alinhando-se a iniciativas globais que combinam saúde, segurança e sustentabilidade.
A Psicologia como Pilar Estratégico em Meio aos Riscos Invisíveis do Cais
No contexto portuário, a Psicologia ultrapassa a dimensão do benefício opcional: ela se revela como ferramenta estratégica para a gestão de riscos, aumento da produtividade e cuidado com o capital humano, com potencial para reduzir sinistros, promover a eficiência e humanizar uma das profissões mais críticas para a economia nacional, conforme ressaltado pela Associação Brasileira de Psicologia do Tráfego – ABRAPSIT (2022).
Os riscos psicossociais do TPA vão muito além do esforço físico e do manejo de cargas perigosas. São desafios profundos:
- Instabilidade e Ansiedade Crônica: A imprevisibilidade do chamado no OGMO não afeta apenas a segurança financeira; é fonte constante de ansiedade que sabotam a autoestima e impactam negativamente as relações familiares. Reflexo disso é o sentimento de “viver de esperança”, relatado por trabalhadores na Fundacentro (2024).
- Sobrecarga e Fadiga Decisional: A alternância entre períodos de intensa atividade e de ócio forçado provoca desregulação do ciclo natural de estresse e recuperação do organismo, levando à exaustão cognitiva — um “EPI invisível”, principal fator contribuidor para a desatenção e acidentes (ABRAPSIT, 2022).
- Paradoxo da Hipervigilância: A necessidade de manter constante atenção ao operar em ambiente de elevados riscos gera fadiga mental que, paradoxalmente, pode culminar em complacência perigosa para “agilizar” processos operacionais.
- Cultura do Silêncio e Isolamento Social: Persistem barreiras culturais, como o estigma ligado à busca por ajuda e a rotatividade intensa das equipes, que dificultam vínculos sólidos e agravam a vulnerabilidade emocional do trabalhador.
Iniciativas Adaptadas e Programas Inovadores: Construindo um “Porto Seguro” Psicológico
O aprendizado de setores como rodoviário, aviação e offshore aponta para soluções efetivas aplicáveis ao setor portuário:
- Integração Psicológica no OGMO: Implementação de programas de acolhimento psicológico formal, com técnicas de autogestão do estresse e mindfulness, para preparar o trabalhador à espera e pressão do chamado.
- Plantão Psicológico e Grupos de Apoio: Presença de profissionais de psicologia no cais ou via teleatendimento, facilitando espaços seguros e sigilosos para discutir temas como gestão da raiva, conflitos laborais e saúde familiar.
- Check-ups de Saúde Mental e Avaliações de Fadiga: Ferramentas de triagem rápida e periódica para identificação precoce de trabalhadores em estado de risco, com base em evidências aplicadas em setores estratégicos da aviação e transporte.
- Treinamento em Fatores Humanos: Capacitação focada em Comunicação Não-Violenta e trabalho em equipe, simulando situações reais para fortalecer a cultura da segurança e suporte mútuo.
Exemplo prático: no Porto de Santos, a implementação de programa de Gestão de Fadiga que previu pausas obrigatórias e rodas de conversa psicológicas resultou em redução de 18% em incidentes de near-miss no primeiro ano — evidenciando o impacto direto dessas práticas na segurança operacional.
Governança do Cuidado: Construindo Redes de Corresponsabilidade
Para que essas soluções sejam duradouras, é imprescindível uma aliança estratégica entre todos os atores envolvidos:
- OGMO: Deve transcender e ampliar o papel de gestor da mão-de-obra e se tornar o “hub” do bem-estar, operando com transparência e confiança junto ao trabalhador.
- Operadores Portuários e Empresas: Investir em saúde mental não como custo, mas como retorno garantido em segurança, produtividade e sustentabilidade operacional.
- Sindicatos: Atuar como legitimadores da pauta, representando autenticamente as demandas e garantindo a eficácia e praticidade das iniciativas.
- Autoridades (Portuária e ANTAQ): Conduzir regulação e incentivos financeiros que promovam a saúde psicossocial no setor, inspirando-se em modelos como o “Programa de Melhoria das Condições de Trabalho”.
- Psicólogos: Adaptar a ciência à realidade singular do cais, criando protocolos e práticas baseadas em evidências para o contexto portuário.
Desafios do presente e do futuro
Investir na saúde mental do Trabalhador Portuário Avulso é um imperativo ético e estratégico diante dos desafios do século XXI.
A proteção da mente, ainda pouco focada, deve ser encarada com a mesma seriedade dos EPIs físicos, consolidando portos humanos, resilientes e competitivos.
O alinhamento com agendas globais, como as propostas na COP 30, e a incorporação de práticas recentes nacionais e internacionais, reforçam que a humanização do trabalho portuário não é apenas uma ideia nobre, mas uma condição para a segurança, eficiência e sustentabilidade da operação.
Investir no TPA é investir na alma dos portos brasileiros. Por meio da Psicologia aplicada, reduz-se a ocorrência de acidentes, assegura-se o bem-estar e potencializa-se a produtividade. Esta pauta deve ser abraçada urgentemente, pois portos humanos são, inevitavelmente, portos preparados para os desafios do presente e do futuro.
Antonio Mauricio Ferreira Netto - Engenheiro mecânico e de produção. Especialista em Planejamento e Gestão Pública; Transportes; Transportes Urbanos; Portos; Desenvolvimento Urbano e Políticas Públicas
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