03/01/2021 11h04
Foto: Marcello Casal Jr - Agência Brasil
O ideal neste início de 2021 seria dizer: o pior já passou. Mas, com o grau de incerteza que ainda paira sobre o cenário político e econômico, tudo aponta para um ano de mais dificuldades. Questões fiscais em aberto, recrudescimento da Covid-19, incertezas sobre o avanço das reformas, aumento de despesas, tudo isso combinado indica mais um ano muito desafiador pela frente. Esta edição de Grandes Grupos ainda não traduz em números o retrato de 2020, pois os balanços aqui analisados referem-se ao exercício de 2019. Mas já sinalizam a trajetória que deverá ser seguida. Depois da boa evolução da receita em 2018 (10,7%), após dois anos sofríveis, os 200 maiores grupos perderam velocidade em 2019. A receita bruta, de R$ 4,6 trilhões, cresceu 7% em termos nominais. A evolução real, descontado o IPCA (4,3%), foi de 2,6% ante 7% em 2018.
A última linha dos balanços, porém, mostrou boa evolução: depois de recuar 18,5% em 2018, a queda no lucro líquido em 2019 foi de 2,2%, de R$ 280,2 bilhões para R$ 274,1 bilhões. Além de eventuais ajustes de gestão, o que pode explicar essa redução de perdas é o bom desempenho da área financeira, sobretudo bancos, cuja fatia no lucro líquido consolidado das 200 maiores aumentou de 37,7% para 48,9%. A participação das áreas de comércio e indústria encolheu muito pouco. Já o setor de serviços reduziu seu pedaço no lucro de 28,1% para 18,7%. Vale ressaltar que o setor de finanças foi o que registrou o menor crescimento de receita: 3,7% (nominal) e 0,6% negativo (real). O comércio apresentou o maior avanço: 11,4% (nominal) e 6,8% (real) – mas caiu de 7,1% para 5,3% sua participação no lucro líquido dos 200 maiores.
Um dado que tem servido para apostas otimistas para 2021 é a evolução de 7,7% no Produto Interno Bruto (PIB), do segundo para o terceiro trimestre de 2020 (depois de queda de 9,7% em igual comparação anterior). Mesmo com essa subida, apenas saltos substanciais daqui para frente seriam suficientes para compensar as perdas acumuladas ao longo dos anos. A própria ata do Comitê de Política Monetária (Copom) publicada no último dia 15 de dezembro indicava que a retomada da economia deverá ser gradual, e não em V, como querem os mais otimistas do governo.
Há ainda questões que se arrastam ao longo do tempo, como revela estudo da Fundação Getulio Vargas divulgado em meados de dezembro. O ano de 2020 deverá ser lembrado por registrar os piores resultados para uma década de crescimento econômico e de variação do PIB per capita dos últimos 120 anos. Seria assim mesmo sem a pandemia.
Tomando por base estimativas de perda de 4,4% no PIB de 2020 e retração de 5,1% na conta per capita, o estudo projeta elevação média de 0,2% do PIB entre 2011 e 2020 – uma década absolutamente perdida, em que o recuo médio per capita, de 0,6%, igual ao observado no período 1981-1990, também será o pior resultado desde 1901.
Ainda em dezembro, o Ibovespa praticamente compensava a totalidade das perdas acumuladas no ano e projeções para o final de 2021 chegavam a alcançar até algo superior a 130 mil pontos. O otimismo é explicado por analistas da Safra Corretora com a antevisão do início da aplicação de vacinas anticovid e o consequente possível começo do fim da pandemia. O arrefecimento dos efeitos negativos da crise sugere, na avaliação dos analistas, a ocorrência de ventos favoráveis para a atividade econômica até meados de 2021 num cenário de manutenção dos juros em níveis historicamente baixos.
A manutenção da taxa de juros estável em 2021 é vista com uma ressalva: “sob a hipótese de que não haverá desvios das regras fiscais sem a devida compensação na forma de geração de um superávit primário suficiente para fazer a dívida pública convergir para um padrão mais próximo ao de outros países emergentes” – diz a “Carta do Gestor” da Macro Capital. Cautelosos, depois da última reunião do Copom no ano, em dezembro, os economistas do Itaú Unibanco revisaram suas projeções para a taxa Selic de 3,0% para 3,54% no fim de 2021.
Diferentes fontes do mercado enxergam ventos favoráveis com a perspectiva de crescimento acentuado da economia mundial. A recuperação dos países centrais, como resultado da vacinação em massa, beneficiaria as economias emergentes. Haveria alguma normalização das cadeias de comércio, aumento da demanda por commodities, maiores fluxos de turismo, planos de investimento em infraestrutura dos Estados Unidos e gradual aumento do consumo das famílias na China.
Outro fator positivo, mas ainda muito incerto, é retomada da agenda de reformas propostas pelo governo (incluídas as estruturais, com privatizações, reforma administrativa e reforma tributária). Mesmo os mais otimistas a esse respeito enfatizam a necessidade de preservação do teto de gastos como garantia da sustentabilidade de tendências de recomposição do PIB. O melhor dos cenários, com todas as ressalvas, é de uma expansão da ordem de 4% no PIB para 2021.
Boa parte das análises prevê perda de impulso da inflação, depois de avançar por meses seguidos, na esteira da depreciação cambial, aumento de preço de commodities e melhoria dos níveis de atividade, com demanda reaquecida e algum descompasso de oferta. Em meados de dezembro, o Boletim Focus registrava uma projeção de 4,35% como mediana em 2020 para o IPCA e 3,34% em 2021. Na área cambial, a previsão é de estabilidade do dólar, vindo de R$ 5,20 em 2020 para R$ 5,03 em 2021.
Em função de vários descompassos, houve falta de insumos para produção, como é o caso do aço. A indústria automobilística, depois de um ritmo lento de produção, demonstrou falta de fôlego para adaptar-se à reviravolta da demanda antes comprimida, com irregularidades no fornecimento de insumos, componentes e matérias-primas.
Com a perspectiva de recrudescimento da pandemia em 2021, a recuperação de terreno deve estender-se a 2022, à medida que os mercados de trabalho respondam aos estímulos da maior atividade, por indução de juros em patamares baixos e programas de socorro social e apoio às empresas mais vulneráveis aos efeitos do desastre econômico-sanitário.
Como parte deste novo momento que estaria se aproximando, a expectativa é que se dará uma substituição do perfil de consumo do segmento de bens para o de serviços. Estaria aí um fator crucial para mover a economia adiante.
A indústria, motor primordial para a movimentação do PIB, deverá continuar atada a restrições de produtividade que vêm de muito antes de a crise pandêmica acrescentar barreiras ao crescimento do setor. A remodelação das cadeias globais de valor, por razões defensivas recomendadas pela pandemia, além do mais, encontrará a economia brasileira com apenas umas poucas brechas de exposição ao comércio internacional, de também históricas insuficiências – seja qual for a relação cambial.
O economista David Kupfer (1957-2020), um dos mais capacitados estudiosos da economia industrial, escreveu mais de uma vez no Valor sobre o que ele chamava de “doença industrial brasileira”, em que predominava uma “armadilha de baixo custo” responsável pelo claudicante andar do setor, com problemas próprios, paralelos aos determinantes das oscilações de vigor da economia em seu todo. Em síntese, haveria uma tendência, ditada pela confluência de fatores micro e macroeconômicos, para as empresas optarem pela busca de simples redução de custos, em detrimento de investimentos novos (sempre relativamente caros) em capacidade e inovação. A pandemia veio agravar o problema.
Segundo cálculos do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), a produtividade total dos fatores (PTF) recuou 0,6% ao ano, em média, entre 2014 e 2019, enquanto o valor adicionado à economia diminuiu 0,5% em igual comparação. “Num ambiente de incerteza elevada, como ocorreu após a recessão de 2014 a 2016, e agravado no atual contexto da pandemia, os empresários postergam investimentos em capital físico e inovação, com impactos negativos sobre o crescimento do estoque de capital em uso e na PTF”, apontam os economistas do Ibre/FGV Fernando Veloso, Silvia Matos e Paulo Peruchetti, em estudo antecipado ao Valor.
Para Kupfer, livrar-se da armadilha de baixo custo exigiria a promoção de um “upgrade” absolutamente intensivo em investimentos privados e públicos, de produtos e processos, na direção dos demais padrões de concorrência. Ele acrescentava: “Claro que manter a indústria presa à competição em preços, quando os custos no Brasil são altos e crescentes, é duelar com as armas em que outras formações industriais nacionais, especialmente as asiáticas, são imbatíveis. É derrota certa”.
São fatores de complicação num novo ano que deverá ser de esforços redobrados das empresas não financeiras, de todos os tamanhos, na busca de reposição de perdas de rentabilidade patrimonial de 2018 para 2019, que certamente se repetiram em 2020, mesmo após os esforços de redução de custos e despesas no início da crise pandêmica.
Como pano de fundo para qualquer análise de conjuntura, há um impasse e um embate, que já se dava antes e a crise desencadeada pela pandemia exacerbou, entre os que defendem uma política econômica de rigor fiscalista e os que advogam a derrubada do teto de gastos para abrir espaço a mais auxílio emergencial, como também ao investimento público levado adiante das urgências iniciais de socorro, focado em perspectivas de longo prazo.
Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-ministro das Comunicações e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), disse em artigo para o Valor que “entraremos em 2021 com a economia de volta ao seu leito normal do ciclo econômico”. A seu ver, porém, haveria um problema fundamental à espera de resolução firme: a necessidade de rolar a dívida pública em títulos estaria criando uma situação perigosa de solvência de curto prazo.
De outro lado, o economista André Roncaglia de Carvalho (autor, com Paulo Gala do livro “Brasil, Uma Economia que Não Aprende”, 2020) não é menos enfático ao afirmar que “estamos longe de restaurar níveis pré- pandemia”. Bastaria considerar que o atual nível de atividade (princípio de dezembro) se encontra 7% abaixo do pico atingido no primeiro trimestre de 2014. Em PIB per capita, haveria um retrocesso de dez anos a ofuscar os celebrados 7,7% do segundo para o terceiro trimestre.
Mendonça de Barros (como o ministro Paulo Guedes) acredita que a recuperação está firme e se consolidará em “V”. Roncaglia adverte que, se o teto fiscal for mantido (e os gastos emergenciais não forem renovados), haverá em 2021 uma redução de 8,4% do PIB em termos de gasto público. “Impor uma queda deste tamanho é literalmente abrir a porta da frente para a crise social. É inviável o funcionamento do Estado com um ajuste fiscal desse tamanho.”
O que Mendonça de Barros considera inviável é a trajetória da dívida mobiliária de curto prazo, superior a 100% do PIB, para cuja rolagem, ele observa, os investidores começam a exigir juros mais elevados. Não é o cenário de riscos que os defensores da expansão fiscal enxergam, inclusive em raciocínios que abrangem as perspectivas para a inflação e juros.
Roncaglia se coloca entre os que gostariam de ver o investimento público desamarrado do curto-prazismo com que se trabalha no mercado financeiro (de olhos voltados para riscos de alta da inflação e antevisões de alta dos juros que não se justificariam) e empurrando a economia para saltos expressivos no longo prazo. Por isso ele aplaude a ideia exposta por Luiz Carlos Bresser Pereira de criação de uma agência que faria a gestão de recursos derivados da compra pelo Banco Central de certa parcela de dívida do Tesouro, a serem aplicados em projetos selecionados de investimento público.
Inquestionável é que a pandemia terá peso determinante na configuração de cenários ao longo de 2021, como teve em 2020. A volatilidade do câmbio continuará como risco permanente, a refletir, sobretudo, instabilidades associadas à persistência de incertezas quanto à sedimentação de rumos da própria economia e à capacidade de manobra política do governo em suas tentativas, que deverão persistir, de conduzir a bom termo as reformas pretendidas.
Em qualquer hipótese, a grande questão brasileira, agravada pelas incertezas pós-pandemia, continuará sendo o cenário nebuloso de longo prazo. As inclinações da economia política do governo, geralmente vincadas pela aversão de Brasília a qualquer movimento que possa dar relevo à presença do Estado na vida nacional, não favorecem o clareamento de perspectivas a este respeito.
A importância adquirida pela inevitabilidade da destinação de recursos públicos para enfrentamento de efeitos da pandemia terminou por dar relevo público a um discurso, que se mantinha contido em círculos acadêmicos e políticos restritos. Abriu-se, assim, um espaço de contestação à possível não renovação das medidas adotadas pelo governo para fazer frente aos estragos econômicos e sociais causados pela pandemia. Também se expandiu a abrangência do debate sobre os rumos do investimento público no longo prazo. Algum benefício a pandemia acabou trazendo.
Fonte: Valor Econômico