05/12/2025 06h06
Foto: Divulgação
“Imprevistos meteorológicos” levaram a (tão aguardada) “final de campeonato” ser interrompida: o Ministro Augusto Nardes pediu vista logo após a leitura da primeira parte do voto do relator, Antônio Anastasia, seguida do voto do revisor, Bruno Dantas, que abriu divergência em torno de questão fulcral. O 2º tempo da partida está previsto para o próximo 8/DEZ (incidentalmente “Dia da Justiça”!), quando devem votar os demais sete ministros.
Em síntese; após mútuas trocas de elogios e gentilezas preambulares:
Como se vê, para além das preocupações e objetivos declarados em suas leituras, no essencial são dois entendimentos/visões bastante divergentes, quase antagônicos. Vale lembrar, contudo, que suas linhas mestras são suportados por pareceres de disputados juristas; como, p.ex, Carlos Ayres Britto e Carlos Ari Sundfeld, no que foi chamado de “guerra de pareceres”. Portanto, entende-se, nenhum dos dois votos é desprovido de sustentação jurídica.
Registre-se, também, que apesar de tão divergentes, foram defendidos no colegiado com elegância e respeito; bem ao contrário do que se tem visto crescentemente em alguns plenários: mais uma lição desse processo, a ser acrescentada ao elenco tratado em artigo anterior sobre o tema (“Legados já deixados pelo processo do Tecon-10”). Ou seja; sim, é possível! Este um saudável e belo exemplo para esse momento de um País polarizado!
E não para aí: também, na prática, essa plenária do TCU evidenciou e reafirmou a importância, a insubstituibilidade do (verdadeiro) debate. Aliás, algo análogo tanto às simulações de stress no mercado financeiro, como aos exames de esforços (esteiras), indicados pelos cardiologistas: ambos são prescritos porque determinados comportamentos não se manifestam em situações “normais”; apenas sob condições extremas!
O voto do relator não chega a ser uma surpresa; seja porque o modelo já fora aventado em vários eventos e fóruns, seja porque a própria ANTAQ o apresentara como alternativa; aliás algo que ele próprio fez questão de frisar, mais de uma vez. O mesmo não pode ser dito sobre o voto do revisor; tanto no tom como no mérito:
No mérito trouxe à baila a questão da verticalização (Item-23ss) que, se para a logística de graneis (sólidos e líquidos; minerais e vegetais) é algo consolidado e tratado com naturalidade, para o de contêineres segue sendo objeto de análises e discussões, sob diversos aspectos, mundo afora.
No processo do Tecon-10 já de há muito a verticalização estava ausente. Não que houvesse sido esquecida; mas que, como destacou o relator em sua réplica, lendo textualmente as respectivas manifestações, ela foi analisada e “afastada” pela SeinfraPortoFerrovia (área técnica do TCU), pelo CADE, pela SEAE e pela própria ANTAQ.
Assim, é discutível a afirmação do revisor de que “a ANTAQ acertou no diagnóstico mas, na hora da prescrição, exitou” (ou algo equivalente): se teria “afastado” a verticalização (segundo o relator), aspecto basilar para o voto do revisor e motivação de sua “recomendação”, como entender que “acertou no diagnóstico”? (Item-14ss).
A surpresa estava por vir
Em seu relatório Bruno Dantas apresenta uma série de dados e referências para embasar seu diagnóstico e argumentos. Alguns deles ‘’Dados fornecidos por um agente interessado em participar do leilão não foram assimilados por nós acriticamente. Tomamos a cautela de verificar bases oficiais...” (Item-32). P.ex: a) “... no período de apenas um ano, a participação de mercado dos grandes armadores europeus verticalizados (Maersk/MSC, CMA-CGM e Hapag-Lloyd) aumentou significativamente. Em contrapartida, e como consequência direta, os “demais armadores” – que incluem operadores globais relevantes como Cosco, ONE, Evergreen e Yang Ming – viram sua participação de mercado ser fortemente comprimida para números próximos de 10%” (Item-30ss); b) “Os dados reais acima consolidam a percepção de que, quando um armador controla o terminal... ele tem a capacidade e o incentivo para prejudicar seus concorrentes (outros armadores)...” (Item-49); c) “Entre os principais problemas relatados estão:... cobrança de sobrestadia de contêineres (demurrage e detention), mesmo quando o atraso não é culpa do usuário; crônica dificuldade em agendar a entrega de contêineres cheios nos terminais ...; obstáculos para a devolução de contêineres vazios ...; e constantes atrasos e omissões de escalas de navios...” (Item-40/41); entre outros.
E, mais ou menos como uma conclusão sobre esse aspecto, “Essas práticas anticoncorrenciais são de difícil detecção e comprovação, demonstrada pela dificuldade do Cade em processar inquéritos sobre essa temática. .....já justificariam a adoção de remédios concorrenciais com a seriedade que a situação exige” (Item-50).
Ou seja, parodiando a expressão popular, o Ministro Bruno Dantas colocou o bode na sala!
Independentemente do significado que terão para a decisão final do Tecon-10, há que se convir que tais afirmações, quase que em tom de denúncias, são de per si graves e com implicações que transcendem tal processo. Sendo feitas por um ministro, ex-presidente da Corte de Contas, então, não têm como serem ignoradas; mesmo porque, no fundo, estariam questionando os papeis e atuação de fiscalização, controle e regulação da ANTAQ, do CADE e do próprio TCU. Faz-se, pois, necessário serem examinados tais dados, interpretações deles decorrentes e respectivas implicações sobre o funcionamento do mercado logístico brasileiro: seja para confirmá-los, seja para corrigi-los, seja para refutá-los.
A essa altura mais uma lição: aparentemente essa análise (a fiscalização também) é complexa e dificultada pela inexistência de dados/indicadores adequados, regulares, confiáveis e públicos. Os que surgem são, em geral, produzidos pontualmente, por interesses próprios, e usados para defesa de teses específicas. Vale a reflexão: esse quadro não compromete a regulação ex-post (louvada e, SMJ, prioritariamente adota do Brasil); dado que a ANTAQ e o CADE, além de não disporem de muitos desses dados/indicadores, só (ou majoritariamente) começam atuar a partir de denúncias de condutas inadequadas?
Mas a principal surpresa do relatório do revisor, Bruno Dantas, não foi a defesa do modelo bifásico; mas sim as críticas ao modelo trazido ao plenário pelo relator: ele foi classificado como “ingênuo” e por ele justificado: “Essa proposta, com o devido respeito, é ingênua e fracassará no selvagem mundo real. É uma solução meramente de manual (“by the book”) que ignora os verdadeiros incentivos econômicos dos agentes envolvidos...”. (80) “A ingenuidade da proposta da unidade instrutora fica ainda mais evidente quando a contrastamos com a complexidade e o rigor dos procedimentos que o próprio Cade, a autoridade máxima no assunto, adota em casos semelhantes... (109) Na avaliação do leilão do Tecon 10, nada disso foi especificado.
A unidade instrutora tratou o desinvestimento como se bastasse “vender em 180 dias”, deixando todo o poder na mão de quem venceu o leilão e tem os piores incentivos para criar um rival efetivo. (114) A “solução” de confiar apenas no desinvestimento ex post do incumbente vencedor não funciona na vida real, e menos ainda em Santos, onde cada mês de atraso remunera os operadores verticalizados e concentrados horizontalmente. (116) Sem o mesmo arcabouço testado e validado pelo Cade, tudo isso vira promessa vazia e convite ao jogo de atraso e venda decorativa. E, no meio tempo, o porto segue 100% verticalizado, com mais fila e menos rotas. (117).
Vale registrar que, ao tratar do modelo e de sua “ingenuidade”, as menções e responsabilizações do revisor foram dirigidas à SeinfraPortoFerrovia (área técnica do TCU). Mas, a rigor, tal crítica não seria também aplicável ao CADE, SEAE e à própria ANTAQ; dado que todos teriam “afastado” a verticalização da análise de concentração?
Difícil ver luz no fim do túnel!
Os posicionamentos de relator e revisor parecem inconciliáveis: mais pelas fundamentações explicitadas que pelo modelo proposto, em si, SMJ. Há interesses comerciais, societários e estratégicos bem explicitados. Alguns entendem haver também disputas institucionais e corporativas. Parlamentares e governantes já haviam se manifestado; agora ouve-se falar da “entrada em cena” da Casa Civil, o que teria surpreendido o MPOR: eventualmente pode ser mais um elemento de tensão inter-institucional. Ademais o tempo é pra lá de exíguo: restam apenas 11 dias para o 2º tempo!
Entretanto, por outro lado, a necessidade de ampliação de capacidades para movimentações de contêineres nos portos brasileiros (Sudeste à frente) é uma necessidade quase que unanimemente reconhecida; e urgente. A expectativa, principalmente entre os embarcadores, por uma decisão é enorme (entre operadores logísticos, de uma maneira geral). Mas não uma decisão qualquer: além de técnica e legalmente adequada, ela precisa ser implementável com a urgência devida. Para o futuro próximo do Porto de Santos adianta pouco o TCU tomar uma decisão se, p.ex, na semana seguinte o processo vier a ser judicializado e seu desenlace se tornar imprevisível.
Claro que assiste direito a qualquer cidadão ou PJ levar ao Judiciário suas querelas; seus pleitos. Mas, como para a logística brasileira o importante é contar com o aumento da capacidade, com o novo terminal, seria mais que desejável evitar-se a judicialização; não? Nesse sentido, imagina-se que uma decisão do TCU, por unanimidade de seus ministros, poderia reduzir o risco da judicialização. Mais, ainda, se prontamente endossada pelos diversos órgãos que participaram do processo até o momento.
Mas como? As posições não são tão díspares? A notícia alvissareira é que os dois protagonistas dessa discussão, relator e revisor, são os ministros Antônio Anastasia e Bruno Dantas: Bruno entusiasta do consensualismo; autor de livro sobre o tema e criador da SecexConsenso (IN TCU nº 91/2022) visando “solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos na Administração Pública Federal”; e Anastasia, professor de direito, com multifacetada e respeitada experiência na administração pública, adepto do consequencialismo, “abordagem que valoriza as consequências práticas e futuras de uma decisão judicial ou administrativa, em vez de se ater apenas a normas formais”; abordagem que ganhou bases mais claras com a atualização da “Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro” – LINDB (2018), particularmente seu art. 20: “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. Bingo!
Consensualismo e consequencialismo: será que não poderiam dar sua contribuição nesse momento crucial do processo decisório do Tecon-10? Se vêm sendo praticadas pelo TCU para “solução de controvérsias e prevenção de conflitos” para contratos firmados, vigentes, por que não para os instrumentos os geram (modelagem, edital, etc); uma vez constatada a explicita controvérsia e potenciais conflitos previsíveis neste caso?
Simples, fácil certamente não é. Mas se há dois ministros que podem construir um voto-condutor e levar o TCU à unanimidade são justamente Bruno Dantas e Antônio Anastasia; mesmo porque sob os votos finais que explicitam as divergências, os relatórios e, principalmente, as falas de ambos na plenária da semana passada, é possível identificar diversos pontos de contato que podem vir a ser o embrião dessa construção: uma alternativa de alie “vacinas” contra concentração (horizontal e vertical), com instrumentos/”remédios” ágeis e eficazes de fiscalização e compliance.
Aliás, o relator, em sua réplica, já procurou arrolar alguns desses pontos de contato, reduzindo o arco do que ele via como efetiva divergência; enquanto Bruno deu algumas pistas nas entrelinhas de sua fala. Portanto, impossível tampouco é!
Grande desafio e, se exitosa a operação, pode se tornar um exemplo de consensualismo e consequencialismo na prática. E, mesmo, um case e benchmarking para destravamento de gargalos da/na infraestrutura brasileira. Meritório o esforço para que a logística e o comércio exterior brasileiros, no próximo 8/DEZ, não fiquem a ver navios.
Frederico Bussinger – Engenheiro, economista e consultor. Foi diretor do Metro/SP, Departamento Hidroviário (SP), e da Codesp. Também foi presidente da SPTrans, CPTM, Docas de São Sebastião e da Confea.
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