01/10/2025 06h06
Foto: Divulgação
A concessão da Ferrogrão (EF-170) tem novo cronograma: o Governo Federal prevê o envio da documentação para análise do TCU até o último trimestre deste ano, e a realização do leilão no início de 2026. A informação é da ANTT, divulgada no evento “Desafios do Transporte Ferroviário e Competitividade do Setor Produtivo”, realizado no último 5/AGO, em Brasília: promoção da Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil – CNA e Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais – Abiove, com apoio de diversas outras entidades.
A Ferrogrão - FG, com extensão prevista de 933 km, é um projeto ferroviário “greenfield”. Em desenvolvimento desde 2012, visa ligar Sinop (no norte de Mato Grosso; região produtora de soja e milho) a Miritituba-PA (município de Itaituba), às margens do Rio Tapajós, onde estão instalados diversos terminais, modernos, para embarque de grãos em comboios hidroviários.
Dista cerca de 360 km de Santarém-PA, encontro das águas azuis-caribenho do Tapajós com as do Amazonas. Registre-se que tanto Sinop, como Miritituba e Santarém são também interligadas pela BR-163.
O projeto foi qualificado no Programa de Parcerias de Investimentos - PPI na 1ª Reunião do seu Conselho, em 2016: Resolução nº 2, convertida no Decreto 8.916. Posteriormente ele foi selecionado e incluído no “Novo PAC”, em 2024.
Mas, se o projeto veio a ser mais uma vez revisado em seu traçado, e o processo avança em termos de modelagem, regulação e tramitações administrativas, os obstáculos para licenciamento ambiental e no front judicial ainda não foram totalmente resolvidos. E mais; surgiram novos:
No centro das discussões da FG, como é possível observar, sempre a Convenção OIT-169 e seu principal instrumento, a CCPLI. Aliás, algo que não é nem fato isolado nem expediente recente. Relembre-se alguns casos, a título de exemplo:
A dificuldade de licenciar o empreendimento, por quase uma década, levou o Consórcio Transnorte a devolver a concessão da linha de transmissão de energia Manaus-Boa Vista (721 km; R$ 1,1 bilhão de investimentos). Dada sua importância para conectar o último estado brasileiro ao Sistema Interligado Nacional – SIN, o projeto acabou sendo reencaminhado, por meio de uma declaração de “interesse nacional”, em face da crise imigratória venezuelana de alguns anos atras. Finalmente acaba de ser inaugurada (10/SET/25). Os aproveitamentos hidroenergéticos do Tapajós e, mesmo, sua hidrovia não seguiram o mesmo caminho: o processo de licenciamento foi interrompido, e até hoje não foi retomado.
Mais de 40 anos após a inauguração da Hidrelétrica de Tucuruí, 15 da conclusão de sua eclusa, na qual foram investidos R$ 1,66 bilhão, na época, a navegação pelo Rio Tocantins ainda não é possível ao longo dos 12 meses do ano: pende o derrocamento do Pedral do Lourenço, cuja licença só veio a ser concedida pelo Ibama em maio último.
No caso da FG a discussão remonta a 2017 quando, por meio de uma “Recomendação”, o MPF pediu “anulação” das audiências públicas então agendadas pela ANTT: ela dava prazo para adoção de providências, fazia advertências, brandia ameaças de responsabilização por “improbidade administrativa”, e deixava no ar a possibilidade de um processo judicial específico e/ou uso do Inquérito Civil Público nº 1.23.008.000678/2017-19 (arquivado pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, na reunião de 9/AGO/22 - Item-36 da pauta; tendo sido sucedido por um “Procedimento Administrativo de Acompanhamento”).
O que é a OIT-169?
Trata-se de uma das convenções da Organização Internacional do Trabalho – OIT, aprovada em 27/JUN/89, atualmente ratificada por 24 dos 187 seus países-membros. Desses, 15 são latino-americanos e 5 europeus: Dinamarca, Noruega, Holanda, Espanha, Luxemburgo e Alemanha. Entre os não-ratificantes pode-se citar as principais potências mundiais e países reconhecidos pelo engajamento na agenda ambiental/sustentabilidade: Austrália e Nova Zelândia, Bélgica, Canadá, China, Finlândia, França, Índia, Itália, Japão, Portugal, Rússia, UK e USA.
OIT-169 é um termo, uma designação amplamente difundida. Mas no Brasil, a rigor, seria mais próprio mencionar-se os decretos que incorporaram a convenção internacional ao ordenamento jurídico pátrio: Decreto Legislativo nº 143/02; e Decreto nº 5.051/04 (revogado pelo Decreto nº 10.088/19, que a incorporou como seu Anexo LXXII).
Na sua aplicação a casos concretos, a OIT-169 é coadjuvada pela “Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH” e pela “Declaração Americana sobre Direitos dos Povos Indígenas - DADPI”; recepcionada pelo Decreto nº 678/92.
A análise da “Recomendação” do MPF (e da posterior NT nº 1/2021/6ªCCR/MPF, na mesma linha) é um bom roteiro, tanto para exegese da OIT-169 como para familiarização com a interpretação que foi sendo cristalizada: suas premissas, análises, conclusões e enquadramentos, que se entrelaçam milimetricamente, como naqueles quebra-cabeças (“puzzles”) de milhares de peças, podem ser reconhecidos, quase como um “template”, em relatórios, discursos, trabalhos acadêmicos de norte ao sul do País; assim como em processo similares. Tal conteúdo está agora sistematizado no “Manual de Jurisprudência dos Direitos Indígenas”, publicado pelo MPF em FEV/19.
Texto esmerado, em português correto e compreensível, a “Recomendação” é assinada por 3 Procuradores do MPF em Itaituba-PA. Tem construção lógica bem articulada; e transita entre uma tese acadêmica e um didático documento doutrinário. Para (bem) além do seu objetivo específico, todavia, e ao longo de suas 10 páginas de considerandos, recomendações e advertências, vai-se tomando conhecimento da existência, dentro dos 8.510.000 km² da Terra Brasilis, de áreas/territórios com governança bem específica: com elevado grau de autonomia, instituições e instrumentos próprios. Poderiam ser consideradas algo na linha de “regiões autônomas” existentes, p.ex, em alguns países europeus? Vale examinar:
No mais das vezes o texto da “Recomendação” é claro, explícito, preciso e fundamentado.
Mas, aqui e acolá, inclui termos subjetivos e conceitos amplos a demandar interpretações (e reinterpretações) futuras e/ou caso a caso. Acabam sendo “ganchos” (na linguagem jornalística) sempre disponíveis para serem utilizados, a qualquer momento e com objetivos diversos; dificultando análises, discussões e decisões. P.ex.:
Até os contornos geográficos não são objetivamente definidos; nem sequer têm critérios objetivos para defini-los: “A Portaria Interministerial nº 60/2015... presume interferência de empreendimentos em terra indígena a uma distância de 10km, presunção que, em hipótese nenhuma, exclui a realização de estudos para definir áreas afetadas e que estejam a uma distância maior”; mencionam os procuradores.
Imprevisibilidade e implicações
Esses entendimentos, todavia, não estão pacificados. O TCU vem também tratando de temas congêneres, com base nos mesmos diplomas, mas com interpretação distinta daquelas da “Recomendação” para aplicação das normas internacionais. P.ex; o Acórdão nº 2.723/2017-Plenário do TCU, conclui que “as comunidades indígenas não têm soberania sobre o seu território, e sim prerrogativa de uso. Quem tem de decidir o que é possível ser feito em terras indígenas é o Congresso Nacional” (vide, particularmente, itens nº 137-139, e 222-223).
O que deve prevalecer? A visão do TCU ou a do MPF? Na prática, a que tem prevalecido é a do MPF, razão pela qual os processos têm andamento sincopado, seja na esfera ambiental, seja judicial.
A dimensão e implicações institucionais e constitucionais desse imbróglio é tema para longos debates de juristas, magistrados e políticos. Mas ele também suscita questões e tem implicações práticas e imediatas. No caso da FG, duas, p.ex.:
Enfim, não teríamos produzido no Brasil um paradoxo? Ou seja: é sabido, quase um consenso, que ferrovia é um modo de transporte de alta eficiência energética, baixa emissão (gases de efeito estufa e particulados), seguro, amigável ao entorno, etc; etc. Mundo afora têm-se notícia de projetos cada vez mais ambiciosos. Todavia, em nosso País, com a governança que pouco a pouco foi sendo desenvolvida, e tomando-se por base a saga da FG, fica cada vez mais difícil vislumbrar-se caminhos que viabilizem a implantação de novos trechos ferroviários (“greenfield”). O que fazer?
O irônico é que essa governança, engripada, tem se mostrado tremendamente eficaz para dificultar iniciativas dos poderes executivos da RFB; e nos seus 3 níveis. O mesmo, porém, não se pode dizer, p.ex., em relação à implantação de pistas de pouso em reservas; tampouco no tocante a estradas, atracadouros, e garimpos clandestinos. Caberia indagar: teriam os “povos interessados” se manifestado sobre suas implantações? Ou são essas as “prioridades” resultado de seus “poderes de decisão”? Tais empreendimentos foram “escolhidas” por meio de alguma CCLPI?
A FG é apenas um exemplo: outros projetos ferroviários podem estar na fila de espera para seguir a mesma via crucis. Projetos hidroviários, rodoviários e portuários (para ficar só no campo da infraestrutura logística) de igual forma, vez que suas governanças são similares.
Será que não haveria outro arranjo, outra governança capaz de, simultaneamente, atender os respeitáveis valores, cultura e prioridades dos “povos interessados”, sem obstaculizar a implantação de ferrovias e projetos infraestruturais congêneres? Seria esse o único caminho?
Está aí um grande e inalienável desafio!
É meritório o esforço que tem feito o MT, a ANTT e o empreendedor para avançar no processo em direção à concessão e à implantação de uma FG sustentável. Mas não é suficiente: as frentes judicial e de licenciamento também precisam avançar mais rapidamente e caminhar para decisões definitivas: a morosidade e postergação de decisões podem reduzir e, até, vir a comprometer sua viabilidade no futuro.
Para tanto a OIT-169 é um condicionante incontornável. E por ser um roteiro/protocolo com aspectos subjetivos, permitindo interpretações diversas, as decisões são sempre mais difíceis e incertas. Esses subjetivismos já deveriam ter sido tratados/regulamentados de há muito; mas não o foram. Aliás, é o que registra o Acórdão nº 2.723/17 do TCU: “Ocorre que o art. 231, § 3º, da Carta Magna e a Convenção-OIT 169 ainda não foram regulamentados de forma a tornar clara como se dá a participação desses povos na agenda estratégica nacional...” (Item 138).
Claro que a antevéspera da COP-30 não é um bom momento para se discutir essa questão.
Mas, mais cedo ou mais tarde ela terá que ser enfrentada, e uma regulamentação, abrangente, eficaz e compreensível precisará daí emergir; sob pena de inviabilizar definitivamente a implantação de alguns projetos infraestruturais essenciais para o desenvolvimento do País. E, mesmo, para soluções mais sustentáveis; como é o caso de ferrovias e de transporte aquaviário.
O histórico da Ferrogrão mostra que fácil não é. Mas será tarefa impossível?
Frederico Bussinger – Engenheiro, economista e consultor. Foi diretor do Metro/SP, Departamento Hidroviário (SP), e da Codesp. Também foi presidente da SPTrans, CPTM, Docas de São Sebastião e da Confea.
O conteúdo dos artigos é de responsabilidade dos seus autores. Não representa exatamente a opinião do MODAIS EM FOCO