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Entrevista

Equilíbrio fiscal para um futuro melhor

Márcio Garcia, PhD por Stanford e professor titular da PUC-Rio, fala dos riscos do crescimento constante da relação dívida-PIB

11/11/2020 18h00

Foto: Divulgação

Árduo defensor do corte de gastos públicos para equilibrar as contas do governo, incluindo uma ampla reforma administrativa que englobe os servidores atuais, Márcio Garcia, PhD por Stanford e professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio, explicou, em entrevista à Carta da Indústria, os riscos do crescimento constante da relação dívida-PIB. Especialista em finanças e coautor do livro “Risco e Regulação”, ele coloca a questão fiscal como o ponto central do Brasil e classifica de “neurose” o longevo problema do país de gastar muito e mal. Enfrentar essa situação, afirma Garcia, é fundamental para a atração de investimentos e a geração de empregos.

Carta da Indústria (CI): Você diz que a principal “neurose” que aflige a economia é o Estado gastar muito e gastar mal. Por que é uma neurose?

Márcio Garcia: A neurose é algo que faz mal, mas que, sem perceber, repetimos compulsivamente. Ocorre sob diversas formas, sobretudo porque raramente conseguimos mudar. Apesar de nos fazer mal, continuamos fazendo igual. Vejo pessoas que passaram pelo governo federal há dez anos, ou mesmo na época do Delfim Netto (ministro do Planejamento entre 1979 e 1985) e, se bobear, no tempo do Roberto Campos (que atuou nos governos Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Castelo Branco, entre os anos 1950 e 1960), e todos com problemas similares, sempre por conta disso. A nossa neurose é não respeitar os limites do orçamento. E tem a questão da eficiência dos serviços públicos. Se olhar o que gastamos em saúde e educação, é muito mais do que países com a mesma renda, e nós oferecemos serviços muito piores. Essa realidade deve ser enfrentada. Por isso, a reforma administrativa é hoje a prioridade nesse sentido.

CI: Qual seria sua receita para este momento e o modelo ideal de reforma administrativa?

Márcio Garcia: Tem que fazer o que o Paulo Guedes, ministro da Economia, previa no início do governo. Isso inclui uma reforma administrativa que não seja apenas para quem ainda vai entrar no serviço público. Isso não adianta. Precisa ter impacto fiscal. Por exemplo, acabar com a promoção por tempo de serviço, porque senão a folha de pessoal cresce anualmente 5% acima da inflação, mesmo sem qualquer reajuste salarial. Isso não dá mais. Além disso, atualmente existem planos de cargos e salários em que o servidor chega no topo da carreira em cinco anos. Isso não pode existir. Se esses pontos não forem mudados, não vamos resolver nossos problemas; por isso a neurose. Quando a neurose chega a um ponto em que torna a sua vida disfuncional, tem que dar um jeito nela.

CI: Qual seria a reforma administrativa ideal e o risco de não domarmos essa “neurose”?

Márcio Garcia: Se estivermos em uma economia sempre em estagnação, vamos distribuir miséria. Então é necessário resolver isso. O crescimento inexorável das despesas públicas, que ocorre ano após ano, com governos de esquerda e de direita, está batendo no limite. Olhando para todos os indicadores – de endividamento, de gastos públicos etc., o Brasil está totalmente fora dos padrões para os países com a sua faixa de renda. O Estado brasileiro precisa ser reformulado. As ideias que o Paulo Guedes tinha no início da gestão são válidas e precisam ser retomadas. Desestatizar é uma boa ideia. A ação do Estado deve se concentrar, pelo menos do lado produtivo, em atividades em que, de outra forma, o setor privado não pode prover. Por exemplo, se o setor elétrico precisou ficar nas mãos do Estado no passado, hoje a iniciativa privada pode prover esse serviço muito bem, desde que tenhamos uma estrutura regulatória bem feita, que funcione, com separação entre Ministério e agência reguladora.

CI: A agenda de privatizações, pelo menos, não foi esquecida.

Márcio Garcia: Qualquer iniciativa no sentido correto ajuda, é mais um tijolinho. Porém, a agenda não está articulada com o Congresso Nacional. Como enfrentar isso? Fazendo política com pessoas que saibam negociar. Apesar de tudo, o ministro da Economia ainda mantém o governo sem ultrapassar o teto de gastos, evitando uma situação que poderia nos levar de volta a um mundo que achei que tivéssemos abandonado de vez em 1994. Sempre digo para os meus alunos: estudei muito inflação, mas espero não precisar usar meus conhecimentos para algo prático, só para estudo sobre o que ocorreu no passado do Brasil.

CI: Você teme a volta da inflação no curto prazo? Já seria o momento de subir a Selic, por exemplo?

Márcio Garcia: Não vejo razão para subir a taxa básica de juros. Há um índice de desemprego enorme, não é o momento de fazer isso. Já a inflação, há alguns itens em alta, mas inflação mesmo não temos. No curto prazo não temo uma alta da inflação pelas mesmas razões. Mas se o país continuar com um lado fiscal que torna a dívida em crescimento constante, tenho certeza de que vai voltar. Não sei quando, mas sei que vai.

CI: Qual a sua avaliação sobre a trajetória crescente da dívida pública?

Márcio Garcia: A dívida pública está dando um pulo enorme este ano, e isso está relacionado com a pandemia. O inimigo é o vírus e temos que ganhar essa guerra. O que não pode fazer é, como disse o próprio Paulo Guedes, gastar para ganhar eleição. No momento, estamos numa crise de expectativa, com todos observando se o governo vai respeitar ou não o teto de gastos. O teto não é a única solução, mas é a que foi apontada, e o seu rompimento indicaria que o país pode seguir ultrapassando barreiras na relação dívida-PIB, quando sabemos que isso não pode continuar.

CI: Você teme que essa trajetória de crescimento da dívida prossiga e se torne insustentável?

Márcio Garcia: Isso nunca aconteceu com o Brasil e provavelmente não vai ocorrer. O mercado sempre antecipa a crise, caso seja transmitida uma evidência de que não haverá limite para os gastos fiscais. E como isso acontece? Nos leilões do Tesouro Nacional, às quintas-feiras, nos quais já está havendo um encurtamento no prazo dos títulos da dívida pública. São riscos que devem ser levados em consideração, porque têm consequências sociais. Não podemos furar o teto, por mais meritório que seja o objetivo. Tem que cortar gastos para beneficiar quem precisa, contendo, por exemplo, os privilégios.

CI: Podemos fazer um exercício sobre as consequências desses riscos, para efeito de entendimento da dinâmica do mercado?

Márcio Garcia: Antes de mais nada, o Brasil melhorou muito, se considerarmos do período hiperinflacionário para cá. E também se compararmos com a Argentina, o que ela é hoje. Estamos bem melhores. Além disso, o fato de termos uma democracia estável há 35 anos é um ponto bastante otimista, que mostra que podemos avançar. Porém estamos em uma derivada ruim e arriscando voltar para uma situação ainda pior. Se a parte fiscal explode, a gente volta para um mundo de inflação. A economia política da inflação é complicada, porque ninguém acha que é culpado. Nem o Banco Central, no passado, achava que tinha culpa, o que é um absurdo, porque se não houvesse emissão monetária, poderia não haver inflação. É similar à situação de hoje: ninguém considera o aumento dos gastos culpa sua. Todos pedem só mais um pouquinho de verba. Sim, mas é a soma de tudo que está se tornando inviável. Com isso, quando se quer colocar ordem na casa, é preciso cortar coisas boas também.

CI: Há algo de positivo no momento?

Márcio Garcia: Estamos conseguindo retomar a economia, de alguma forma. Mas estamos numa quadratura em que o mais importante é a parte fiscal, porque não se pode brincar com o risco de uma crise.

CI: Enfrentando finalmente a “neurose”, o país vai melhorar sua atratividade e aumentar os investimentos?

Márcio Garcia: Sim. Sem resolver a questão fiscal, o investimento virá em muito menos quantidade do que poderia. Costumo dizer que a principal “tecnologia” que um país em desenvolvimento deve ter é credibilidade de longo prazo. Podemos ter mais investimentos, empregos e capital, embora – devo lembrar – tenhamos melhorado bastante em relação ao que éramos 40 anos atrás. Temos uma democracia estável e isso é bom. O Brasil é um país atraente. Investimentos virão, porém em menor escala do que poderia.

Publicado na Revista Carta da Indústria, edição de outubro/2020